A presente introdução visa aprofundar-se no Livro de Mateus, o primeiro dos evangelhos canônicos, sob uma perspectiva protestante evangélica conservadora. Este estudo não apenas desvendará as riquezas intrínsecas do texto mateano, mas também servirá como um modelo estrutural para a análise de qualquer livro das Sagradas Escrituras.
A abordagem será caracterizada por um rigor acadêmico, uma densidade teológica e uma reverência inabalável à inerrância e inspiração verbal da Bíblia. Buscaremos equilibrar a erudição necessária para o estudo sério com uma acessibilidade pastoral, a fim de que tanto o estudioso quanto o leitor comum possam ser edificados e equipados para uma compreensão mais profunda da Palavra de Deus.
Mateus ocupa uma posição singular no cânon, atuando como uma ponte vital entre o Antigo e o Novo Testamento. Ele é, por excelência, o evangelho que apresenta Jesus Cristo como o Messias prometido a Israel, o Rei davídico e o cumprimento de todas as profecias veterotestamentárias.
Sua narrativa meticulosa não é meramente biográfica, mas profundamente teológica, construída para persuadir seus leitores da identidade e da missão de Jesus, e para instruir a comunidade da nova aliança sobre a natureza do Reino dos Céus e as demandas de seu Rei. Ao longo desta introdução, defenderemos posições tradicionais de autoria e datação, respondendo a críticas acadêmicas modernas com base em evidências internas e externas, e sublinhando a natureza cristocêntrica de toda a Escritura.
O modelo analítico proposto se desdobrará em cinco seções fundamentais, cada uma explorando um aspecto crucial para a compreensão integral de um livro bíblico: seu contexto e autoria, sua estrutura e conteúdo, seus temas teológicos e propósito, sua relevância canônica e, finalmente, os desafios hermenêuticos que apresenta.
Esta estrutura visa a fornecer uma ferramenta robusta para o estudo bíblico, permitindo uma análise sistemática e profunda que honre a autoridade divina da Escritura e promova uma fé informada e madura. Que o Espírito Santo ilumine nossa jornada através deste evangelho fundamental, revelando a glória de Jesus Cristo, o Filho de Deus e Salvador do mundo.
1. Contexto histórico, datação e autoria
A compreensão de qualquer texto antigo é intrinsecamente ligada ao seu contexto de produção. No caso do Evangelho de Mateus, a questão da autoria, datação e o ambiente histórico-cultural em que foi escrito são cruciais para uma interpretação fiel. A perspectiva protestante evangélica conservadora tradicionalmente defende a autoria apostólica e uma datação relativamente precoce, posições que buscam sustento em evidências históricas e internas do próprio texto.
1.1 Autoria apostólica de Mateus
A evidência mais antiga e consistente para a autoria do Evangelho de Mateus aponta para o apóstolo Mateus, também conhecido como Levi, o coletor de impostos que Jesus chamou para segui-lo (Mateus 9:9). O testemunho patrístico unânime é um pilar fundamental para esta posição. O mais proeminente é Papias de Hierápolis, bispo do século II, que, segundo Eusébio de Cesareia, afirmou: "Mateus, de fato, compilou os oráculos na língua hebraica, e cada um os interpretou como pôde."
Embora a frase "na língua hebraica" tenha gerado debate (se refere ao aramaico ou ao hebraico, e se o texto original era um evangelho completo ou uma coleção de ditos), a atribuição a Mateus é inequívoca e não contestada nos primeiros séculos da Igreja. Ireneu de Lyon, Orígenes e Eusébio, entre outros, ecoam essa tradição, solidificando a crença na autoria mateana. A aceitação universal de Mateus no cânon do Novo Testamento, desde os seus primórdios, também reforça essa atribuição, pois a autoridade apostólica era um critério essencial para a canonicidade.
Internamente, embora o evangelho não se identifique explicitamente como "o livro de Mateus", há indícios que corroboram a autoria apostólica. A familiaridade com detalhes judaicos, a lei e as profecias do Antigo Testamento aponta para um autor judeu. Além disso, a referência à sua própria vocação (Mateus 9:9) com um toque de humildade (ele se descreve como "o publicano", um termo pejorativo) é consistente com a autoria de um dos doze apóstolos, que teria acesso direto aos ensinamentos e eventos da vida de Jesus.
1.2 Datação e o contexto histórico-cultural
A datação do Evangelho de Mateus é objeto de debate, mas a posição evangélica conservadora geralmente favorece uma data anterior à destruição do Templo de Jerusalém em 70 d.C., preferencialmente entre 50 e 65 d.C. Esta datação é crucial porque implica que o evangelho foi escrito em um período em que muitos dos eventos narrados ainda estavam frescos na memória de testemunhas oculares, incluindo o próprio Mateus.
A ausência de qualquer menção explícita à destruição do Templo como um evento passado em Mateus 24, onde Jesus profetiza sua ruína, é um argumento significativo para uma data anterior a 70 d.C. Se o evangelho tivesse sido escrito depois, seria natural que o autor fizesse uma alusão ao cumprimento dessa profecia. Além disso, a forte ênfase de Mateus nas questões judaicas, na Lei e na relação de Jesus com o judaísmo do Segundo Templo, sugere um período em que o debate entre judeus e cristãos judeus ainda era intenso e central, antes da completa separação das comunidades.
O contexto cultural é o do judaísmo do primeiro século, sob ocupação romana. A Palestina era uma caldeira de expectativas messiânicas, tensões políticas e debates religiosos. Mateus escreve para uma comunidade predominantemente judaico-cristã, confrontada com a questão da identidade de Jesus: Ele é o Messias prometido? Como suas palavras e ações se relacionam com a Lei de Moisés e as profecias? O evangelho de Mateus responde a essas perguntas de forma contundente, apresentando Jesus como o Rei esperado, que cumpre a Lei e os Profetas, e que estabelece um novo Reino.
1.3 Resposta às críticas acadêmicas modernas
A alta crítica moderna, desde o século XIX, tem levantado questões sobre a autoria tradicional de Mateus, principalmente por meio da hipótese das duas fontes (prioridade de Marcos e uma fonte Q hipotética). Essa teoria sugere que Mateus e Lucas usaram Marcos e uma coleção de ditos de Jesus (Q) como suas principais fontes, implicando que Mateus, o apóstolo, não seria o autor direto ou, pelo menos, não a única fonte de seu próprio evangelho.
A perspectiva evangélica conservadora reconhece as complexidades literárias entre os evangelhos sinóticos, mas resiste à ideia de que a dependência literária anule a autoria apostólica ou a inerrância. Argumenta-se que um apóstolo como Mateus poderia ter usado fontes existentes, incluindo o evangelho de Marcos (que era uma testemunha ocular de Pedro), ou coleções de ditos, para compor seu próprio evangelho, especialmente se estivesse escrevendo em grego para uma audiência mais ampla, enquanto Papias se referia a uma coleção original de "oráculos" em hebraico/aramaico.
A autoria apostólica não exige que Mateus tenha sido o primeiro a escrever sobre Jesus, nem que ele tenha escrito sem referência a outros materiais. Pelo contrário, sua posição como apóstolo lhe daria a autoridade para compilar, interpretar e organizar os materiais existentes, juntamente com seu próprio testemunho ocular, sob a inspiração do Espírito Santo. A natureza de Mateus como um "evangelho do escriba" (Mateus 13:52) que traz "coisas novas e velhas" (referindo-se ao Antigo e Novo Testamento, ou tradição e testemunho apostólico) é consistente com a figura de um apóstolo erudito.
Em suma, a defesa da autoria apostólica de Mateus, a sua datação precoce e o entendimento do seu contexto judaico-cristão fornecem a base sólida para a interpretação de um evangelho que, desde o início, procurou estabelecer a identidade e a autoridade de Jesus como o Messias de Israel e o Salvador do mundo.
2. Estrutura, divisão e conteúdo principal
A estrutura literária do Evangelho de Mateus é notavelmente organizada e reflete um propósito teológico deliberado. Diferente de uma biografia linear moderna, Mateus emprega uma arquitetura cuidadosa para apresentar Jesus como o Messias prometido e o mestre da nova aliança. Essa organização facilita a compreensão de seus temas centrais e o fluxo argumentativo.
2.1 Organização literária e as cinco grandes divisões
Uma das características mais distintivas da estrutura de Mateus é a alternância entre blocos narrativos e longos discursos de Jesus. Muitos estudiosos identificam cinco grandes blocos de discurso, cada um concluído pela fórmula "Quando Jesus terminou de dizer estas coisas..." (ou variações, como Mateus 7:28, 11:1, 13:53, 19:1, 26:1).
Essa estrutura de cinco discursos, intercalada por seções narrativas, é frequentemente comparada aos cinco livros do Pentateuco (Torá), sugerindo que Mateus está apresentando Jesus como o novo Moisés, que entrega a nova Lei para o povo da nova aliança. Essa organização não é meramente estilística, mas serve a um propósito teológico profundo, demonstrando a autoridade de Jesus como mestre e legislador.
Os blocos narrativos que precedem e seguem cada discurso preparam o cenário, descrevem as ações de Jesus e fornecem o contexto para seus ensinamentos. Eles demonstram a autoridade de Jesus através de seus milagres e confrontos, enquanto os discursos revelam a substância de sua doutrina e os princípios do Reino dos Céus. Juntos, narrativa e discurso formam uma tapeçaria rica que delineia a identidade e a missão de Cristo.
2.2 O fluxo narrativo e argumentativo
O Evangelho de Mateus pode ser amplamente dividido em três seções principais, além de uma introdução e uma conclusão, que englobam os cinco discursos e a narrativa de forma coesa:
1. A Apresentação do Messias (Mateus 1:1-4:16):
- Genealogia e nascimento de Jesus, estabelecendo sua linhagem real e messiânica (Mateus 1).
- A visita dos Magos, a fuga para o Egito e o retorno a Nazaré, cumprindo profecias e prefigurando seu reinado universal (Mateus 2).
- João Batista e o batismo de Jesus, sua unção e início do ministério (Mateus 3).
- A tentação no deserto, confirmando sua pureza e obediência ao Pai, e o início de seu ministério na Galileia (Mateus 4:1-16).
2. O Ministério do Messias na Galileia (Mateus 4:17-18:35):
- Primeiro Discurso: O Sermão da Montanha (Mateus 5-7). Jesus como o mestre da nova justiça, interpretando e cumprindo a Lei.
- Narrativa de milagres e curas, demonstrando o poder do Reino (Mateus 8-9).
- Segundo Discurso: O Discurso Missionário (Mateus 10). Instruções aos doze apóstolos para a proclamação do Reino.
- Narrativa de crescente oposição e a identidade de João Batista (Mateus 11-12).
- Terceiro Discurso: As Parábolas do Reino (Mateus 13). A natureza e o crescimento do Reino dos Céus.
- Narrativa de conflito com os líderes religiosos e a confissão de Pedro (Mateus 14-16).
- Quarto Discurso: O Discurso sobre a Vida na Igreja (Mateus 18). Instruções sobre humildade, perdão e disciplina na comunidade dos crentes.
3. A Jornada e o Ministério do Messias em Jerusalém (Mateus 19:1-25:46):
- Quinto Discurso: O Discurso Escatológico/Olivert (Mateus 24-25). Profecias sobre a destruição de Jerusalém, a vinda do Filho do Homem e o fim dos tempos.
- A entrada triunfal em Jerusalém, purificação do Templo e confrontos com as autoridades (Mateus 21-23).
4. Paixão, Morte e Ressurreição (Mateus 26:1-28:20):
- A Última Ceia, a traição de Judas, a prisão e os julgamentos de Jesus (Mateus 26-27).
- A crucificação, morte e sepultamento de Jesus, cumprindo as Escrituras.
- A ressurreição gloriosa de Jesus e a Grande Comissão, encerrando o evangelho com um chamado à missão universal (Mateus 28).
2.3 Esboço sintético do conteúdo
Em síntese, o Evangelho de Mateus pode ser visualizado como uma progressão que estabelece a identidade de Jesus, demonstra sua autoridade, revela a natureza do seu Reino e culmina com sua morte expiatória e ressurreição vitoriosa, enviando seus discípulos para fazer discípulos de todas as nações. A estrutura é cuidadosamente elaborada para construir um caso irrefutável para Jesus como o Messias e o Senhor.
Cada parte contribui para a tese central de que Jesus é o cumprimento das esperanças de Israel e o Rei universal. A ênfase na Lei e nas profecias do Antigo Testamento, juntamente com os ensinamentos éticos e escatológicos de Jesus, oferece um plano abrangente para a vida no Reino, tanto para o indivíduo quanto para a comunidade eclesial.
A narrativa de Mateus é, portanto, uma obra-prima de composição literária e teológica, projetada para instruir, persuadir e transformar seus leitores, convidando-os a reconhecer Jesus como seu Rei e a viver sob a ética de seu Reino.
3. Temas teológicos centrais e propósito
O Evangelho de Mateus é uma obra teologicamente rica, tecida com fios doutrinários que revelam a identidade e a missão de Jesus Cristo de forma profunda e multifacetada. A perspectiva evangélica conservadora identifica vários temas centrais, todos convergindo para a apresentação de Jesus como o Messias prometido e o Rei soberano do Reino dos Céus. Esses temas não são meros conceitos abstratos, mas verdades vivas que fundamentam a fé cristã e informam a vida da Igreja.
3.1 Jesus como o Messias e Rei de Israel
Este é, sem dúvida, o tema mais proeminente em Mateus. Desde a genealogia inicial (Mateus 1:1), que traça a linhagem de Jesus a Davi e Abraão, até o seu título de "Rei dos Judeus" na cruz (Mateus 27:37), Mateus se esforça para demonstrar que Jesus é o cumprimento das promessas messiânicas do Antigo Testamento. Ele é o "Filho de Davi", o herdeiro legítimo do trono de Israel, que governará com justiça e retidão.
Mateus emprega a fórmula "para que se cumprisse o que fora dito pelo Senhor por intermédio do profeta" por mais de uma dúzia de vezes, pontuando a narrativa com citações do Antigo Testamento que revelam como a vida, o ministério, a morte e a ressurreição de Jesus eram parte do plano soberano de Deus. Jesus não apenas cumpre a Lei e os Profetas, mas também encarna a própria presença de Deus (Emanuel, "Deus conosco", Mateus 1:23), estabelecendo-se como o Senhor sobre toda a criação e o cabeça da nova aliança.
Sua autoridade é demonstrada não apenas em seus ensinamentos (o Sermão da Montanha, Mateus 5-7), mas também em seus milagres (Mateus 8-9) e em seu controle sobre as forças da natureza e os demônios. Ele é o Rei que veio para reinar, embora seu reino não seja deste mundo no sentido político, mas espiritual e transformador.
3.2 O Reino dos Céus e sua natureza
Mateus é o evangelho do "Reino dos Céus" (usa essa expressão cerca de 32 vezes, em vez de "Reino de Deus", provavelmente por respeito judaico ao nome de Deus). Este Reino é o domínio soberano de Deus, que se manifesta na pessoa e obra de Jesus Cristo. Não é um reino meramente futuro, mas uma realidade presente que irrompeu na história com a primeira vinda de Jesus.
As parábolas do Reino em Mateus 13 descrevem sua natureza misteriosa, seu crescimento gradual e sua eventual consumação. O Reino é caracterizado pela justiça, misericórdia e retidão, e exige uma resposta de fé, arrependimento e discipulado. Não se trata de uma utopia política terrena, mas do governo de Deus nos corações dos homens e na Igreja, que se manifestará plenamente na segunda vinda de Cristo.
A entrada no Reino requer uma "justiça maior" do que a dos fariseus (Mateus 5:20), uma justiça que vem da transformação interior operada pelo Espírito Santo e da obediência radical aos ensinamentos de Jesus. O Reino dos Céus é, portanto, tanto uma realidade presente quanto futura, um convite à submissão ao senhorio de Cristo e uma promessa de glória vindoura.
3.3 A Igreja e a comunidade do Reino
Mateus é o único evangelho a usar explicitamente a palavra "igreja" (ekklesia) (Mateus 16:18 e 18:17). Isso sublinha seu foco na comunidade dos crentes como o povo do Reino. A Igreja é apresentada como a nova comunidade da aliança, construída sobre a confissão de Pedro de que Jesus é o Cristo, o Filho do Deus vivo. Ela é o instrumento de Deus para manifestar o Reino na terra e para levar a Grande Comissão (Mateus 28:18-20) a todas as nações.
As instruções sobre disciplina e perdão em Mateus 18 são fundamentais para a vida e a ordem da Igreja. A Igreja é chamada a ser uma comunidade de discípulos, vivendo sob a autoridade de Cristo, praticando a justiça do Reino e testemunhando ao mundo. Ela é o "sal da terra" e a "luz do mundo" (Mateus 5:13-16), encarregada de proclamar as boas novas e fazer discípulos.
A teologia reformada vê na Igreja o corpo de Cristo, uma manifestação visível e invisível do Reino de Deus, chamada a glorificar a Deus e a desfrutá-lo para sempre. Mateus oferece uma fundação para a eclesiologia, delineando a missão, a estrutura e os valores da comunidade cristã.
3.4 A Nova Torá e a ética do Reino
Jesus é apresentado por Mateus como o novo Moisés, que não veio para abolir a Lei, mas para cumpri-la e interpretá-la em sua plenitude (Mateus 5:17). O Sermão da Montanha (Mateus 5-7) é a "Nova Torá" de Jesus, onde ele revela a verdadeira intenção da Lei de Deus, que vai além da conformidade externa para atingir os pensamentos e as motivações do coração.
A ética do Reino é radical e exigente, chamando os discípulos a amar os inimigos, a buscar a justiça, a praticar a misericórdia e a viver uma vida de santidade que reflita o caráter de Deus. Essa ética não é um meio de salvação, mas a evidência e o fruto da salvação, demonstrando a transformação operada pelo Espírito Santo. Ela é um ideal a ser aspirado por aqueles que entraram no Reino, um padrão de vida que glorifica a Deus e atrai outros ao seu domínio.
3.5 Propósito primário do livro
O propósito primário de Mateus é demonstrar que Jesus é o Messias prometido a Israel, o Rei davídico que cumpre as profecias do Antigo Testamento. Ele busca persuadir seus leitores judeus (e, por extensão, todos os leitores) da identidade messiânica de Jesus e da validade de sua reivindicação de autoridade divina. Além disso, Mateus visa instruir a nova comunidade da aliança (a Igreja) sobre a natureza do Reino dos Céus, as demandas do discipulado e a missão de proclamar o evangelho a todas as nações.
Conectando-se à teologia sistemática reformada, Mateus ressalta a soberania de Deus na história da salvação, a centralidade de Cristo como mediador da nova aliança, a natureza da justificação pela fé que produz frutos de justiça, e o papel da Igreja como agente do Reino na terra. O evangelho de Mateus é, assim, uma poderosa declaração da divindade e senhorio de Jesus, convidando todos a se submeterem a Ele como Rei e Salvador.
4. Relevância e conexões canônicas
O Evangelho de Mateus não é uma ilha isolada no cânon bíblico; pelo contrário, ele está intrinsecamente ligado a toda a narrativa da salvação, desde Gênesis até Apocalipse. Sua posição como o primeiro livro do Novo Testamento não é acidental, servindo como uma ponte essencial entre as promessas do Antigo Testamento e o seu cumprimento em Jesus Cristo. A compreensão de suas conexões canônicas e sua relevância contínua são vitais para uma teologia bíblica robusta e uma prática cristã fiel.
4.1 Importância no cânon e a ponte entre as alianças
Mateus é frequentemente chamado de "o evangelho do Antigo Testamento" devido à sua profusa citação e alusão às Escrituras hebraicas. Ele inicia com a genealogia que conecta Jesus a Abraão e Davi, estabelecendo imediatamente sua legitimidade como o Messias de Israel. Essa abordagem sublinha a continuidade do plano redentor de Deus, demonstrando que Jesus não é uma interrupção, mas a culminação da história de Israel.
O evangelho funciona como uma transição teológica e narrativa, explicando como as promessas de Deus a Israel são cumpridas em Jesus e, através dele, estendidas a todas as nações. Ele mostra que a nova aliança em Cristo não anula a antiga, mas a aperfeiçoa e a expande. A inclusão de Mateus no início do Novo Testamento sinaliza que a história da salvação entra em uma nova fase, mas sempre em continuidade com a fidelidade de Deus ao seu povo da aliança.
4.2 Conexões tipológicas e a leitura cristocêntrica
Mateus emprega consistentemente a tipologia para apresentar Jesus Cristo como o antítipo perfeito de figuras e eventos do Antigo Testamento. Essa leitura cristocêntrica é fundamental para a teologia evangélica. Jesus é o novo Moisés, que sobe a uma montanha para entregar a "nova Torá" (o Sermão da Montanha, Mateus 5-7) e que livra seu povo da escravidão do pecado. Assim como Moisés conduziu Israel para fora do Egito, Jesus é o caminho para a verdadeira liberdade.
Jesus também é o novo Israel, que passa por experiências paralelas às de seu povo: a fuga para o Egito (Mateus 2:13-15, ecoando a saída de Israel do Egito), a tentação no deserto (Mateus 4:1-11, contrastando com a falha de Israel no deserto) e a obediência perfeita. Onde Israel falhou em sua vocação, Jesus triunfou, cumprindo em si mesmo a missão do povo de Deus.
Além disso, Jesus é o cumprimento do "Filho do Homem" de Daniel (Daniel 7:13-14), a figura divina e régia que recebe domínio eterno. A tipologia em Mateus não é meramente alegórica, mas histórica, revelando o desdobramento do plano redentor de Deus, culminando na pessoa e obra de Jesus. Ele é o ponto focal para onde toda a história do Antigo Testamento aponta.
4.3 Cumprimentos no Novo Testamento e citações
Mateus é o evangelho que mais explicitamente declara o cumprimento das profecias veterotestamentárias. Ele usa a fórmula "para que se cumprisse" mais de uma dúzia de vezes, ligando eventos da vida de Jesus a passagens como Isaías 7:14 (nascimento virginal, Mateus 1:23), Oséias 11:1 (fuga para o Egito, Mateus 2:15), Isaías 9:1-2 (ministério na Galileia, Mateus 4:15-16) e Zacarias 9:9 (entrada triunfal, Mateus 21:5), entre muitos outros.
Essa ênfase no cumprimento não apenas valida a identidade messiânica de Jesus, mas também demonstra a fidelidade de Deus em cumprir suas promessas. As citações do Antigo Testamento em Mateus são frequentemente interpretadas como tendo um sentido mais profundo em Cristo do que o seu contexto original poderia sugerir isoladamente, revelando a visão unificada da Escritura sob a inspiração divina.
O próprio Mateus é citado e aludido em outros livros do Novo Testamento. Os ensinamentos de Jesus no Sermão da Montanha, por exemplo, influenciaram profundamente a ética e a teologia das epístolas paulinas e de Tiago. A Grande Comissão (Mateus 28:18-20) se tornou o mandato missionário fundamental para a Igreja, ecoando através de Atos dos Apóstolos e inspirando séculos de evangelização. A visão de Jesus como Rei e Juiz em Mateus 25 encontra paralelos em Apocalipse, onde Cristo é retratado como o Cordeiro e o Leão que reinará para sempre.
4.4 Relevância para a igreja contemporânea
A relevância do Evangelho de Mateus para a Igreja contemporânea é imensa e multifacetada. Ele fornece uma base sólida para a cristologia, reafirmando a divindade de Jesus, sua messianidade e sua autoridade soberana. Em uma era de relativismo e sincretismo, Mateus nos chama de volta à centralidade de Cristo como o único Senhor e Salvador.
Seus ensinamentos sobre o Reino dos Céus desafiam os crentes a viverem uma ética radical de justiça, misericórdia e santidade, que contrasta com os valores do mundo. O Sermão da Montanha continua sendo o paradigma do discipulado cristão, convidando-nos a uma transformação interior que se manifesta em amor ao próximo, perdão e busca pela paz. Mateus nos lembra que a fé não é meramente intelectual, mas exige uma vida de obediência e serviço.
Além disso, a ênfase de Mateus na Igreja como a comunidade do Reino oferece princípios vitais para a eclesiologia e a prática eclesial. As instruções sobre disciplina, perdão e liderança (Mateus 18) são guias para a saúde e a pureza da Igreja. A Grande Comissão (Mateus 28) é um lembrete perene de que a missão da Igreja é global, chamando todos os crentes a participar ativamente na proclamação do evangelho e no fazer discípulos de todas as nações.
Em suma, Mateus é um livro que nos confronta com a majestade de Cristo, a profundidade de seu Reino e a amplitude de nossa missão. Ele nos desafia a uma fé viva, um discipulado autêntico e um testemunho corajoso no mundo.
5. Desafios hermenêuticos e questões críticas
A interpretação do Evangelho de Mateus, embora ricamente recompensadora, não está isenta de desafios. A profundidade teológica, o contexto judaico-cristão e as particularidades de seu gênero literário exigem uma abordagem hermenêutica cuidadosa. A perspectiva evangélica conservadora busca enfrentar essas dificuldades com fidelidade à inerrância bíblica e ao reconhecimento da autoridade divina da Escritura, oferecendo respostas robustas às questões críticas levantadas.
5.1 Dificuldades de interpretação específicas
1. O Sermão da Montanha (Mateus 5-7): A natureza radical das exigências de Jesus – como "ama os teus inimigos" (Mateus 5:44), "não resistas ao perverso" (Mateus 5:39) ou a proibição do divórcio (Mateus 5:32) – levanta questões sobre sua aplicabilidade literal. Alguns o veem como uma ética inatingível que visa a levar ao arrependimento, outros como um ideal escatológico, e outros como uma ética prática para os cidadãos do Reino.
A hermenêutica evangélica geralmente entende o Sermão da Montanha como o padrão de justiça para os que entraram no Reino de Deus, um ideal que o Espírito Santo capacita os crentes a buscar. As "antíteses" ("Ouvistes que foi dito... mas eu, porém, vos digo...") não anulam a Lei, mas revelam sua intenção mais profunda e espiritual, que vai além da conformidade externa para o coração e as motivações.
2. As Parábolas do Reino (Mateus 13): A interpretação das parábolas exige discernimento para identificar o ponto principal de cada história, evitando a alegorização excessiva. As parábolas sobre o joio e o trigo, a rede e os peixes, e o fermento, por exemplo, descrevem a natureza presente e futura do Reino, sua inclusão de justos e injustos até a colheita final, e seu crescimento orgânico e invisível.
3. Passagens Escatológicas (Mateus 24-25): O Discurso do Monte das Oliveiras, com suas profecias sobre a destruição do Templo, a vinda do Filho do Homem e o fim dos tempos, apresenta desafios significativos. A questão da "geração" (Mateus 24:34) – se se refere à geração contemporânea de Jesus, a uma raça de pessoas, ou a uma geração futura no tempo do fim – é central para a interpretação de sua cronologia.
A interpretação evangélica geralmente adota uma visão que reconhece a "dupla referência" profética, onde algumas profecias se cumpriram na queda de Jerusalém em 70 d.C., enquanto outras apontam para a segunda vinda de Cristo. A complexidade do gênero apocalíptico e profético exige humildade e um compromisso com o estudo cuidadoso da interconexão canônica.
5.2 Gênero literário e contexto cultural
Mateus é um evangelho, um gênero literário único que combina elementos de biografia antiga, história, teologia e ética. Não é uma biografia no sentido moderno, mas uma apresentação teológica da vida, ensinamentos, morte e ressurreição de Jesus, com o propósito de persuadir e instruir. Compreender isso é crucial para não impor expectativas anacrônicas ao texto.
O contexto cultural judaico do primeiro século é vital. Expressões como "Reino dos Céus" (em vez de "Reino de Deus"), a ênfase na Lei e nos costumes judaicos, e a polêmica com os fariseus e escribas devem ser lidas dentro desse contexto. O texto reflete um debate intra-judaico sobre quem é o Messias e como a Lei deve ser interpretada, não um ataque indiscriminado ao povo judeu como um todo.
5.3 Problemas éticos ou teológicos aparentes e acusações de antijudaísmo
Algumas passagens de Mateus, como as "ai de vós" aos fariseus em Mateus 23 ou a maldição da figueira (Mateus 21:18-22), podem parecer problemáticas ou duras. É importante interpretar essas passagens dentro de seu contexto retórico e teológico. Os "ai de vós" são condenações proféticas contra a hipocrisia e a rejeição de Deus por parte dos líderes religiosos, não um repúdio à Lei ou ao povo judeu em si. A maldição da figueira é uma parábola em ação, simbolizando o juízo de Deus sobre a esterilidade espiritual de Israel que não produziu frutos de arrependimento e fé.
A acusação de antijudaísmo em Mateus é uma questão sensível e importante. Enquanto Mateus é crítico aos líderes religiosos judeus de sua época, ele não é inerentemente antijudaico. Ele é um evangelho escrito por um judeu para uma audiência predominantemente judaico-cristã, engajado em um debate interno sobre a identidade de Jesus como o Messias. A polêmica é direcionada àqueles que rejeitaram Jesus e distorceram a Lei, não contra o judaísmo como um todo. A Grande Comissão (Mateus 28:18-20) prova o caráter universal da mensagem de Mateus, que inclui judeus e gentios no Reino.
5.4 Resposta evangélica fiel às críticas céticas
A perspectiva evangélica conservadora defende a inerrância e a historicidade de Mateus contra as críticas céticas que questionam sua autoria, datação, ou a veracidade dos milagres e ensinamentos de Jesus. A crença na inspiração verbal das Escrituras implica que Mateus, como todos os livros bíblicos, é a Palavra de Deus sem erro em seus manuscritos originais.
Em relação à crítica das fontes (ex: hipótese da prioridade de Marcos e da fonte Q), a resposta evangélica enfatiza que a utilização de fontes não diminui a autoria apostólica ou a inspiração. Mateus, como um apóstolo e testemunha ocular, tinha a autoridade para selecionar, organizar e interpretar os materiais, sob a direção do Espírito Santo, para produzir um evangelho divinamente inspirado. As harmonizações entre os evangelhos não são contradições, mas perspectivas complementares que enriquecem nossa compreensão da vida de Jesus.
A historicidade dos milagres e da ressurreição é afirmada com base no testemunho das Escrituras e nas evidências históricas disponíveis. A fé evangélica reconhece o sobrenatural como parte integrante da revelação de Deus e do seu plano redentor. A narrativa de Mateus é, portanto, vista como um registro fidedigno dos eventos e ensinamentos de Jesus, interpretados teologicamente.
5.5 Princípios hermenêuticos para interpretação correta
Para uma interpretação correta de Mateus, são essenciais os seguintes princípios hermenêuticos:
- Princípio Gramático-Histórico: Entender o significado do texto no seu contexto linguístico (grego koiné), gramatical, histórico e cultural original.
- Princípio Canônico: Interpretar Mateus à luz de todo o cânon bíblico, reconhecendo a unidade e a coerência da Escritura como a Palavra de Deus. As passagens do Antigo Testamento são cumpridas em Cristo, e Mateus deve ser lido em harmonia com os outros evangelhos e o restante do Novo Testamento.
- Princípio Cristocêntrico: Reconhecer que Jesus Cristo é o centro da revelação de Mateus e de toda a Escritura. Toda a narrativa e os ensinamentos apontam para Ele como o Messias, o Rei e o Salvador.
- Princípio Teológico: Compreender os grandes temas doutrinários (Reino de Deus, salvação, discipulado, etc.) e como eles se encaixam na teologia sistemática reformada, sem impor sistemas ao texto, mas permitindo que o texto informe a teologia.
- Princípio da Aplicação Contextual: Após compreender o significado original, buscar a relevância e aplicação dos ensinamentos de Mateus para a Igreja e o indivíduo contemporâneo, sempre com a consciência de que o Espírito Santo ilumina a compreensão e a aplicação da Palavra.
Ao aplicar esses princípios, o estudioso e o leitor de Mateus podem navegar pelos desafios hermenêuticos com confiança, extraindo as ricas verdades deste evangelho fundamental para a fé e a vida cristã.